quinta-feira, 11 de junho de 2020

Pandemia: Sertão é quando menos se espera. (Cap. II - Reflexões sobre as mudanças atuais)


O cheiro de um bom livro de cabeceira, umas páginas viciadas de tanto abrir e as anotações à tinta ou grafite destacando cada surpresa proporcionada pelo autor é uma viagem emocionante pela consciência do leitor. Simplesmente gratificante.

Para nosso amigo Faustino, rosiano de carteirinha, Grande Sertão: Veredas, é esse o livro de cabeceira. Guimarães Rosa o escreveu como um poema e ao ser lido, torna-se poesia, reafirmando que “um sentir é do sentente, o outro é do sentidor”. A todos deve inspirar fazer recortes da sabedoria de Riobaldo e outros personagens, como a seguir, para o cotidiano brasileiro, principalmente na crise sanitária e econômica dos nossos dias. 
    
“Viver é muito perigoso” - Introspectivo, Faustino reflete sobre a epidemia do momento: como um ente majestoso, digno de coroa ou corona (em espanhol), o vírus da Covid-19 chegou ao mundo como inédita ameaça ao modo humano de viver. Contudo, trata-se de uma coroa das trevas dado o horror a luz solar e ao seu poder maligno. Agindo sempre na sombra, o coronavírus, ao infectar, potencializa doenças pré-existentes que podem levar pobres pacientes a óbito.  Assim, como um perverso animador de enfermidades já instaladas, o vírus atua por trás da cena como um mau figurante que faz do protagonista uma montaria. Conclui: “cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito”.

“O sertão está em toda parte” - E sobre os não doentes, Faustino? Curiosamente, esse vírus diabólico atua também sobre a alma dos não infectados com semelhante manobra, potencializando as patologias psicológicas ou sociais pré-existentes, sem perdão. Relativamente, nos ensina Riobaldo: “Deus existe mesmo quando não há. Mas o diabo não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo”.

“Sertão: é dentro da gente” - Mesmo onde o vírus não existe, ele se faz presente pela mente das pessoas. Como “o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada”, dentre muitos saudáveis vemos o clima de medo, o pânico plantado, o oportunismo, a politização mesquinha, as postagens intolerantes nas redes sociais, a busca por privilégios impróprios e outros casos mais. Parece que removeram o verniz que insistia em camuflar alguns comportamentos.

“Viver é um descuido prosseguido” - Para Faustino, os determinantes epidemiológicos recomendam que não se deve por uma máscara sobre outra. Por metáfora, a partir da hora que fomos obrigados a colocar as máscaras de proteção tivemos que retirar outras que por ventura usávamos: não há dúvida de que os rostos se tornaram visíveis. Impossível esconder, ainda que os atores não percebam o quanto ficaram expostos, descuidados – O rei está nu!

“O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia” - Políticos inescrupulosos se revelam como nunca. Traidores dão bandeira. Escancarou a grande mídia as suas reais intenções. Outros implantam pânico explícito. Alguns, em confortável ‘isolamento horizontal’, defendem essa tese para todos, cegos da realidade dos que vivem sempre aglomerados. A politicagem grassa sob mensagens humanizadas. Uma pseudociência surge utilitária e vacila sobre a verdade em citações divergentes. Para alguns ainda, a fome ou o desemprego virou sinônimo de ganância e a saúde pública se reduziu a uma só doença. Há ainda mentes escravas de ideologias, mais orgulhosas que nunca de suas brilhantes soluções inexequíveis.  Tolas polarizações que estão na moda respaldam interesses antes escusos, mas agora tão acesos e identificáveis como luminosos de redes mundiais de fast food.

“A colheita é comum, mas o capinar é sozinho” - Se obviamente, a pandemia é mundial, o parágrafo acima pode ser aplicado a qualquer lugar do planeta. Mas, infelizmente, o Brasil vive uma imaturidade institucional sem precedentes, praticando atos destrutivos em larga escala e muito blá-blá-blá. Para mudarmos isso: deixe a discussão para depois, faça sua parte discretamente e cresça, porque “o que é o silêncio é? É a gente mesmo, demais”. Então comece, pois, “passarinho que debruça – o voo já está pronto”.

“Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto” - Defensor de um pacto nacional, o estadista Faustino, inconformado com tanta perda de energia e de foco diante da grave crise nacional, pede desculpas aos leitores pelo tom de desabafo. Mas otimista por natureza, crê que com a queda das personas, como no teatro grego, um novo palco se inaugura no nosso país, no qual a verdadeira face dos atores aparecerá. Embora “a natureza da gente não cabe em nenhuma certeza”, podemos estar frente a uma oportuna reinvenção maniqueísta brasileira em que até a sombra trará a luz. Por que não? “Sertão é quando menos se espera”.




sexta-feira, 5 de junho de 2020

O virúvio (Cap. I - Reflexões sobre as mudanças atuais)

No final da década de 1970, Faustino, estudava engenharia em uma jovem Universidade próxima ao Batistão, em Aracaju. Pela proximidade e comodidade, foi morar na rua Cedro – continuação, s/nº. O curioso endereço se devia ao fato que a rua terminava por causa de um canal que a atravessa ainda hoje, e “continuava” do outro lado sem ponte para os autos. Apenas a pé se chegava em casa. Ele, adaptado como um caranguejo, seguia pisando na lama fartamente hidratada pela chuva e pelas marés, exercendo seu direito de ir e vir.

Viver em um endereço sujeito as marés e trovoadas, fez do atual avô coruja Faustino, hoje aposentado, um “cobra” em dilúvios. Sem sobressaltos, ele viu as águas de março fecharem o verão de 2020. Como todos os anos, alagando os locais de sempre, mesmo já asfaltados.

Fera no assunto, nosso expert acreditava saber tudo sobre inundações até que... Os ares de março, encharcados por um vírus, portaram um invasor tão novato quanto ameaçador para nós humanos, o novo coronavírus, causador da covid-19. Com sua memória de elefante, Faustino ensina que nada, nem ninguém jamais conseguiu parar todo o mundo como esse vírus, exceto o emblemático Dilúvio bíblico. Pois, como cita o Primeiro Livro, o aguaceiro torrencial pôs todas as terras submersas (não só a continuação da rua Cedro), permitindo escapar apenas o obstinado Noé, seus familiares e casais de animais na providencial arca.

Menos catastrófica, a inundação virulenta dos nossos dias atingiu apenas os humanos e suas diversas atividades. Comandada pela cigarra do famoso conto, festeja a poupada natureza, como a demonstrar quão ameaçada estava por nós - predadores implacáveis; e refém de um modelo de desenvolvimento insustentável.

Com a economia curta como um coice de preá, ganhamos a possibilidade inédita de reflexão sobre a corrida desenfreada pelo crescimento do PIB, sem que este tenha uma direta relação com atenção à família, a fraternidade, a qualidade de vida, a felicidade, o bem-estar animal e de todos os seres vivos, a intensidade da relação para com nossas crianças e idosos, o maior zelo pela moradia, a justiça social, dentre outros nobres valores humanos materializados por nossas animações.

Animações essas derivadas do Latim “anima” que significa alma, ou que de forma mais simbólica se atribui a tradução de “sopro, ar, brisa”, belamente ilustrado em Gênesis: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente”. Que grandiosa imagem a demonstrar que ar e alma se originam de um mesmo arquétipo, e que o mal ou o bem de um reflete no outro.

Rápido como um falcão, Faustino etimologicamente associa que anima remete a animal e, então este é um ser animado por uma força interior, de comportamento previsível. Ou seja, atua obediente ao rígido padrão da espécie. Diferenciada, a raça humana tem a liberdade (potencial) de adotar comportamentos individuais.

E prossegue -; “se dividirmos a alma humana em seus mínimos pedaços, recriamos o reino animal”, citando o poeta Goethe. A genial afirmação revela a multiplicidade da alma humana a nos fazer ricos de possibilidades de animações, de maneira que todo comportamento animal é também um comportamento humano. Quem nunca virou uma onça, disfarçou como um camaleão ou quis hibernar como um urso? Quem nunca se relacionou com um espírito de porco?

Essa pluralidade de manifestações da alma humana é uma dádiva divina e simultaneamente uma grande ameaça, porque se não é dado ao macaco a chance de desmacacar, nem ao tigre destigrar, nem ao urubu desurubar, ao humano é dado desumanizar.

       E quando tudo isso passar, Faustino? Isso tudo é como um dilúvio disfarçado de vírus, ou um vírus disfarçado de dilúvio. É um verdadeiro VIRÚVIO! E aí, meu amigo, só a certeza da indispensável metamorfose de nossas atitudes em prol de um mundo melhor porque, como visto, o sopro de ar infectado adoece até nossa alma. Entre lagartas e borboletas, selvagens e domesticados, gregários e isolados, façamos escolhas: quais animais, todos presentes em nossa fauna interior, levaremos para a nova arca? Novamente não haverá lugar para todos.



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