No
final da década de 1970, Faustino, estudava engenharia em uma jovem
Universidade próxima ao Batistão, em Aracaju. Pela proximidade e comodidade,
foi morar na rua Cedro – continuação, s/nº. O curioso endereço se devia ao fato
que a rua terminava por causa de um canal que a atravessa ainda hoje, e
“continuava” do outro lado sem ponte para os autos. Apenas a pé se chegava em
casa. Ele, adaptado como um caranguejo, seguia pisando na lama fartamente
hidratada pela chuva e pelas marés, exercendo seu direito de ir e vir.
Viver
em um endereço sujeito as marés e trovoadas, fez do atual avô coruja Faustino,
hoje aposentado, um “cobra” em dilúvios. Sem sobressaltos, ele viu as águas de
março fecharem o verão de 2020. Como todos os anos, alagando os locais de
sempre, mesmo já asfaltados.
Fera
no assunto, nosso expert acreditava saber tudo sobre inundações até que... Os
ares de março, encharcados por um vírus, portaram um invasor tão novato quanto
ameaçador para nós humanos, o novo coronavírus, causador da covid-19. Com sua
memória de elefante, Faustino ensina que nada, nem ninguém jamais conseguiu
parar todo o mundo como esse vírus, exceto o emblemático Dilúvio bíblico. Pois,
como cita o Primeiro Livro, o aguaceiro torrencial pôs todas as terras
submersas (não só a continuação da rua Cedro), permitindo escapar apenas o obstinado
Noé, seus familiares e casais de animais na providencial arca.
Menos
catastrófica, a inundação virulenta dos nossos dias atingiu apenas os humanos e
suas diversas atividades. Comandada pela cigarra do famoso conto, festeja a
poupada natureza, como a demonstrar quão ameaçada estava por nós - predadores
implacáveis; e refém de um modelo de desenvolvimento insustentável.
Com a
economia curta como um coice de preá, ganhamos a possibilidade inédita de
reflexão sobre a corrida desenfreada pelo crescimento do PIB, sem que este
tenha uma direta relação com atenção à família, a fraternidade, a qualidade de
vida, a felicidade, o bem-estar animal e de todos os seres vivos, a intensidade
da relação para com nossas crianças e idosos, o maior zelo pela moradia, a
justiça social, dentre outros nobres valores humanos materializados por nossas
animações.
Animações
essas derivadas do Latim “anima” que
significa alma, ou que de forma mais simbólica se atribui a tradução de “sopro,
ar, brisa”, belamente ilustrado em Gênesis: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em
suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente”. Que grandiosa
imagem a demonstrar que ar e alma se originam de um mesmo arquétipo, e que o
mal ou o bem de um reflete no outro.
Rápido como um falcão, Faustino
etimologicamente associa que anima
remete a animal e, então este é um ser animado por uma força interior, de
comportamento previsível. Ou seja, atua obediente ao rígido padrão da espécie.
Diferenciada, a raça humana tem a liberdade (potencial) de adotar
comportamentos individuais.
E
prossegue -; “se dividirmos a alma humana em seus mínimos pedaços, recriamos o
reino animal”, citando o poeta Goethe. A genial afirmação revela a
multiplicidade da alma humana a nos fazer ricos de possibilidades de animações,
de maneira que todo comportamento animal é também um comportamento humano. Quem
nunca virou uma onça, disfarçou como um camaleão ou quis hibernar como um urso?
Quem nunca se relacionou com um espírito de porco?
Essa
pluralidade de manifestações da alma humana é uma dádiva divina e
simultaneamente uma grande ameaça, porque se não é dado ao macaco a chance de
desmacacar, nem ao tigre destigrar, nem ao urubu desurubar, ao humano é dado
desumanizar.
E quando tudo isso
passar, Faustino? Isso tudo é como um dilúvio disfarçado de vírus, ou um vírus
disfarçado de dilúvio. É um verdadeiro VIRÚVIO! E aí, meu amigo, só a certeza
da indispensável metamorfose de nossas atitudes em prol de um mundo melhor
porque, como visto, o sopro de ar infectado adoece até nossa alma. Entre
lagartas e borboletas, selvagens e domesticados, gregários e isolados, façamos
escolhas: quais animais, todos presentes em nossa fauna interior, levaremos
para a nova arca? Novamente não haverá lugar para todos.
Publicado em:
https://m.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/se/artigos/artigo-o-viruvio,b4dc487c14772710VgnVCM1000004c00210aRCRD
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Sensacional reflexão Paulo! Que essa pandemia sirva para nos aproximarmos de nossa essencial humana mesmo que nos distanciemos fisicamente.
ResponderExcluirObrigado amigo. Creio que estamos vivendo um acelerado processo de evolução. Dolorido mas positivo. Abs
ExcluirEstamos nos reinventando e aprendendo com o novo. Artigo fantástico !
ResponderExcluirObrigado cara amiga. Temos muito a aprender com tudo isso. Abs
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