O
cheiro de um bom livro de cabeceira, umas páginas viciadas de tanto abrir e as
anotações à tinta ou grafite destacando cada surpresa proporcionada pelo autor
é uma viagem emocionante pela consciência do leitor. Simplesmente gratificante.
Para nosso
amigo Faustino, rosiano de carteirinha, Grande Sertão: Veredas, é esse o livro
de cabeceira. Guimarães Rosa o escreveu como um poema e ao ser lido, torna-se
poesia, reafirmando que “um sentir é do sentente, o outro é do sentidor”. A
todos deve inspirar fazer recortes da sabedoria de Riobaldo e outros
personagens, como a seguir, para o cotidiano brasileiro, principalmente na
crise sanitária e econômica dos nossos dias.
“Viver
é muito perigoso” - Introspectivo, Faustino reflete sobre a epidemia do momento:
como um ente majestoso, digno de coroa ou corona (em espanhol), o vírus da
Covid-19 chegou ao mundo como inédita ameaça ao modo humano de viver. Contudo,
trata-se de uma coroa das trevas dado o horror a luz solar e ao seu poder
maligno. Agindo sempre na sombra, o coronavírus, ao infectar, potencializa
doenças pré-existentes que podem levar pobres pacientes a óbito. Assim, como um perverso animador de
enfermidades já instaladas, o vírus atua por trás da cena como um mau figurante
que faz do protagonista uma montaria. Conclui: “cavalo que ama o dono, até
respira do mesmo jeito”.
“O
sertão está em toda parte” - E sobre os não doentes, Faustino? Curiosamente,
esse vírus diabólico atua também sobre a alma dos não infectados com semelhante
manobra, potencializando as patologias psicológicas ou sociais pré-existentes,
sem perdão. Relativamente, nos ensina Riobaldo: “Deus existe mesmo
quando não há. Mas o diabo não precisa de existir para haver – a gente sabendo
que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo”.
“Sertão:
é dentro da gente” - Mesmo onde o vírus não existe, ele se faz presente pela
mente das pessoas. Como “o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada”, dentre
muitos saudáveis vemos o clima de medo, o pânico plantado, o oportunismo, a
politização mesquinha, as postagens intolerantes nas redes sociais, a busca por
privilégios impróprios e outros casos mais. Parece que removeram o verniz que insistia
em camuflar alguns comportamentos.
“Viver
é um descuido prosseguido” - Para Faustino, os determinantes epidemiológicos
recomendam que não se deve por uma máscara sobre outra. Por metáfora, a partir
da hora que fomos obrigados a colocar as máscaras de proteção tivemos que retirar
outras que por ventura usávamos: não há dúvida de que os rostos se tornaram
visíveis. Impossível esconder, ainda que os atores não percebam o quanto ficaram
expostos, descuidados – O rei está nu!
“O
real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da
travessia” - Políticos inescrupulosos se revelam como nunca. Traidores dão
bandeira. Escancarou a grande mídia as suas reais intenções. Outros implantam
pânico explícito. Alguns, em confortável ‘isolamento horizontal’, defendem essa
tese para todos, cegos da realidade dos que vivem sempre aglomerados. A
politicagem grassa sob mensagens humanizadas. Uma pseudociência surge utilitária
e vacila sobre a verdade em citações divergentes. Para alguns ainda, a fome ou
o desemprego virou sinônimo de ganância e a saúde pública se reduziu a uma só
doença. Há ainda mentes escravas de ideologias, mais orgulhosas que nunca de
suas brilhantes soluções inexequíveis. Tolas
polarizações que estão na moda respaldam interesses antes escusos, mas agora
tão acesos e identificáveis como luminosos de redes mundiais de fast food.
“A
colheita é comum, mas o capinar é sozinho” - Se obviamente, a pandemia é
mundial, o parágrafo acima pode ser aplicado a qualquer lugar do planeta. Mas,
infelizmente, o Brasil vive uma imaturidade institucional sem precedentes,
praticando atos destrutivos em larga escala e muito blá-blá-blá. Para mudarmos
isso: deixe a discussão para depois, faça sua parte discretamente e cresça, porque
“o que é o silêncio é? É a gente mesmo, demais”. Então comece, pois,
“passarinho que debruça – o voo já está pronto”.
“Tem
horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma
espécie de encanto” - Defensor de um pacto nacional, o estadista Faustino,
inconformado com tanta perda de energia e de foco diante da grave crise nacional,
pede desculpas aos leitores pelo tom de desabafo. Mas otimista por natureza,
crê que com a queda das personas, como no teatro grego, um novo palco se
inaugura no nosso país, no qual a verdadeira face dos atores aparecerá. Embora “a
natureza da gente não cabe em nenhuma certeza”, podemos estar frente a uma oportuna
reinvenção maniqueísta brasileira em que até a sombra trará a luz. Por que não?
“Sertão é quando menos se espera”.