Vimos no
texto anterior – publicado em 29/09/14 - que o relógio representa a caminhada humana na
busca de emancipar-se dos ciclos da natureza. Para uma nação, domínio
tecnológico é sinônimo de soberania. Assim, construtores de relógios foram
vistos como provedores de recursos estratégicos e inovadores. Eles foram os
primeiros a aplicar conscientemente as teorias da mecânica e da física no
fabrico de máquinas, ao envolver cientistas, como Galileu e Hooke, com artesãos
e mecânicos. Ou seja, articulações iniciais do que hoje denominamos Pesquisa e Desenvolvimento
– P&D. Portanto, fabricantes de relógios foram os primeiros produtores de
instrumentos científicos.
Com efeito,
há o caso de um relógio do século XVI, que demorou mais de 20 anos para ser
construído, composto de mais de 1800 rodas dentadas feitas à mão, com a ajuda
de um pioneiro torno mecânico. Também, há um relógio construído em 1380, em
Salisbury, na Inglaterra, que é considerado o mais antigo relógio mecânico em
funcionamento, confeccionado manualmente sem um único parafuso, já que a
tecnologia para abertura de roscas em metal ainda era desconhecida.
Conflitos
religiosos e convulsões políticas decorrentes da Reforma Protestante e da
Guerra dos Trinta Anos dispersaram relojoeiros de toda a Europa para duas ilhas:
a Suíça, cercada de montanhas, e a Inglaterra, cercada pelo mar.
Da
Inglaterra, berço da Revolução Industrial, origina a especialização e a divisão
do trabalho, que a torna exportadora de relógios, tendo alcançado a marca de 80
mil unidades, já em 1786. Em paralelo, na Suíça, nasce a precisão e a qualidade
dos relógios definitivos, vistos como joias e obras de arte. Tradição, cujo
epicentro dá-se em Genebra, para onde milhares de refugiados relojoeiros
seguiram Calvino, autor do primeiro manual do cristianismo protestante.
Esse
movimento parece inspirar o êxodo dos cientistas atômicos, exilados por
perseguições nazifascistas, no século XX, rumo aos Estados Unidos. Em ambas as
eras, muitos imigrantes com especialidades avançadas chegaram para fazer a
diferença, difundindo uma nova cultura e gerando valor ao lugar, instalando o
que chamamos, hoje, de Arranjo Produtivo Local – APL.
O sucesso
suíço na fabricação de relógios vem a ser seriamente abalado na década de 1970,
por conta do surgimento dos relógios digitais produzidos a preços baixos pelo
Japão, Coréia e China. Marcas como Seiko e Citizen, aderem agressivamente nos
pulsos dos consumidores como objetos acessíveis a todos.
Essa
concorrência muda definitivamente a indústria suíça, obrigando o fechamento de
fábricas, demissões em massa e concordatas. Enfim, o caos se implanta com
vigor. Entre 1977 e 1983, a participação suíça no mercado mundial caiu de 43%
para 15%. De líder para terceiro colocado em seis anos.
Sabemos como
é difícil mudar paradigmas. É quase impossível crer que um fabricante suíço de
relógios aceitaria abrir mão de sua tradição secular por imposições de concorrentes
de qualidade e durabilidade inferiores. Contudo, duas grandes empresas resolveram
deixar o orgulho de lado e se juntar para enfrentar o inimigo com as mesmas
armas: automatizar a linha de produção, simplificar os mecanismos e substituir
as pulseiras de aço por plástico.
O choque e
as reações foram explosivos. Inicialmente, foram acusados pelos concorrentes
locais, de destruir a reputação histórica do relógio suíço. Porém, se
defenderam alegando que a qualidade dos produtos seria superior e que manteriam
os mecanismos analógicos dos mostradores. E mais, decidiram reinventar o negócio,
ao trocar a imagem de objeto eterno para sazonal. Em resumo, um artigo de moda,
que pudesse ser mudado como se troca de roupa.
Assim, nasce
a Swatch, em 1983, com o lançamento da primeira coleção Primavera/Verão, composta
de modelos femininos e masculinos. Sucesso imediato entre os jovens. Desde
1992, a Swatch é a marca mais vendida no mundo, recolocando a Suíça no topo da
indústria relojoeira.
Se não
bastasse a metáfora do funcionamento do cosmo, as implicações geopolíticas, a
aplicação de teorias científicas na inovação, as reordenações sociais e a
emancipação do homem em relação à natureza; o relógio ainda influi diretamente
na alma humana ao fundar o valor moral da pontualidade.
Publicado
no jornal Cinform de 13/10/2014 – Caderno Emprego
Nenhum comentário:
Postar um comentário