segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Relógio: global e pontual ao mesmo tempo

Vimos no texto anterior – publicado em 29/09/14 - que o relógio representa a caminhada humana na busca de emancipar-se dos ciclos da natureza. Para uma nação, domínio tecnológico é sinônimo de soberania. Assim, construtores de relógios foram vistos como provedores de recursos estratégicos e inovadores. Eles foram os primeiros a aplicar conscientemente as teorias da mecânica e da física no fabrico de máquinas, ao envolver cientistas, como Galileu e Hooke, com artesãos e mecânicos. Ou seja, articulações iniciais do que hoje denominamos Pesquisa e Desenvolvimento – P&D. Portanto, fabricantes de relógios foram os primeiros produtores de instrumentos científicos.
Com efeito, há o caso de um relógio do século XVI, que demorou mais de 20 anos para ser construído, composto de mais de 1800 rodas dentadas feitas à mão, com a ajuda de um pioneiro torno mecânico. Também, há um relógio construído em 1380, em Salisbury, na Inglaterra, que é considerado o mais antigo relógio mecânico em funcionamento, confeccionado manualmente sem um único parafuso, já que a tecnologia para abertura de roscas em metal ainda era desconhecida.
Conflitos religiosos e convulsões políticas decorrentes da Reforma Protestante e da Guerra dos Trinta Anos dispersaram relojoeiros de toda a Europa para duas ilhas: a Suíça, cercada de montanhas, e a Inglaterra, cercada pelo mar.
Da Inglaterra, berço da Revolução Industrial, origina a especialização e a divisão do trabalho, que a torna exportadora de relógios, tendo alcançado a marca de 80 mil unidades, já em 1786. Em paralelo, na Suíça, nasce a precisão e a qualidade dos relógios definitivos, vistos como joias e obras de arte. Tradição, cujo epicentro dá-se em Genebra, para onde milhares de refugiados relojoeiros seguiram Calvino, autor do primeiro manual do cristianismo protestante.
Esse movimento parece inspirar o êxodo dos cientistas atômicos, exilados por perseguições nazifascistas, no século XX, rumo aos Estados Unidos. Em ambas as eras, muitos imigrantes com especialidades avançadas chegaram para fazer a diferença, difundindo uma nova cultura e gerando valor ao lugar, instalando o que chamamos, hoje, de Arranjo Produtivo Local – APL.
O sucesso suíço na fabricação de relógios vem a ser seriamente abalado na década de 1970, por conta do surgimento dos relógios digitais produzidos a preços baixos pelo Japão, Coréia e China. Marcas como Seiko e Citizen, aderem agressivamente nos pulsos dos consumidores como objetos acessíveis a todos.
Essa concorrência muda definitivamente a indústria suíça, obrigando o fechamento de fábricas, demissões em massa e concordatas. Enfim, o caos se implanta com vigor. Entre 1977 e 1983, a participação suíça no mercado mundial caiu de 43% para 15%. De líder para terceiro colocado em seis anos.
Sabemos como é difícil mudar paradigmas. É quase impossível crer que um fabricante suíço de relógios aceitaria abrir mão de sua tradição secular por imposições de concorrentes de qualidade e durabilidade inferiores. Contudo, duas grandes empresas resolveram deixar o orgulho de lado e se juntar para enfrentar o inimigo com as mesmas armas: automatizar a linha de produção, simplificar os mecanismos e substituir as pulseiras de aço por plástico.
O choque e as reações foram explosivos. Inicialmente, foram acusados pelos concorrentes locais, de destruir a reputação histórica do relógio suíço. Porém, se defenderam alegando que a qualidade dos produtos seria superior e que manteriam os mecanismos analógicos dos mostradores. E mais, decidiram reinventar o negócio, ao trocar a imagem de objeto eterno para sazonal. Em resumo, um artigo de moda, que pudesse ser mudado como se troca de roupa.
Assim, nasce a Swatch, em 1983, com o lançamento da primeira coleção Primavera/Verão, composta de modelos femininos e masculinos. Sucesso imediato entre os jovens. Desde 1992, a Swatch é a marca mais vendida no mundo, recolocando a Suíça no topo da indústria relojoeira.
Se não bastasse a metáfora do funcionamento do cosmo, as implicações geopolíticas, a aplicação de teorias científicas na inovação, as reordenações sociais e a emancipação do homem em relação à natureza; o relógio ainda influi diretamente na alma humana ao fundar o valor moral da pontualidade.



          Publicado no jornal Cinform de 13/10/2014 – Caderno Emprego

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