São visíveis algumas heranças que recebemos. Umas são bem mais recentes que outras, mas, por certo, nem todas malditas. Dentre elas, cabe destacar o pensamento positivista surgido no início do século XIX, a partir das ideias do francês Augusto Comte, que nos dias atuais campeiam com vigor exagerado.
O
positivismo crê na ciência como redentora da humanidade. Assim, afirma que só é
verdade o que pode ser comprovado aos nossos olhos e analisado à luz do pensar
consciente. Esse modo de ver o mundo é responsável, dentre outras coisas, pelo
lema da bandeira brasileira ‘ordem e progresso’, derivado da divisa comteana ‘O
Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por meta’, pilares de uma
sociedade justa, fraterna e progressista, na visão do filósofo.
Esse ponto
de vista desconsidera tudo que possa ser mágico ou sobrenatural, isto é, tudo
que não possa ser percebido pelos cinco sentidos que possuímos. Seriam, então,
sobrenaturais as invisíveis emoções e os sentimentos? Seria mágico se
tivéssemos em nosso corpo órgãos que funcionam alheios à força de nossa
consciência, a exemplo das vísceras e coração?
Não
subordinar tudo à esfera do pensar traz uma riqueza maior na compreensão da
humanidade, pois sabemos que não somos exclusivamente governados pelo pensar
consciente. Paralelamente, agimos motivados por emoções e vontades
inconscientes que são forças pra lá de influentes, quando não são determinantes.
Agir só com a cabeça é agir de maneira fria e lenta.
Hoje
valorizamos de forma exagerada a inteligência e o pensar racional. Todos nós
declaramos explicitamente o empenho e o desejo de termos os familiares bem
aprovados no decadente vestibular. Ver o filho passar no vestibular de medicina
ou em outra carreira disputada parece ser a realização da própria educação.
Para muitos pais e educadores essa passagem funciona como uma espécie de ‘lavar
as mãos’, isto é: fiz a minha parte e agora é com você.
Queremos,
acima de tudo, filhos inteligentes. Acreditamos que a racionalidade os fará
felizes, harmoniosos, bons, alegres, cheios de virtudes, saudáveis,
comunicativos, respeitosos, socialmente responsáveis, honestos, justos,
habilidosos, etc. Essa é a falácia da nossa era do intelecto.
Supervalorizamos
a formação do pensar e desconsideramos a educação das atitudes e das ações no
dia-a-dia pedagógico e familiar. Chega a ser apelativo o enaltecimento da
inteligência nos métodos didáticos. Daí, emblematicamente, derivam os quatro
pilares da educação para o século XXI da Unesco: aprender a aprender, aprender
a conviver, aprender a fazer e aprender a ser. É só ‘aprender’ e ‘aprender’ e
‘aprender’. Isso leva muitas escolas a trabalharem apenas o aprender a aprender
e esquivarem-se dos demais saberes.
Não muito
distante dessa prática, encontramos outro trabalho muito citado por educadores
e consultores, que versa sobre a inteligência emocional, defendida por Daniel Goleman. Novamente a
inteligência suprema manda no resto. Será que é assim mesmo? O apelo ao dom da
inteligência se repete no projeto ‘Escola da Inteligência’ de Augusto Cury, nas
inteligências múltiplas de Howard Gardner, na inteligência social de Robert
Thorndike, dentre outros. Afinal, queremos participar ativamente da sociedade
da informação e da economia do conhecimento, nas quais impera a inteligência.
Reconheço
que exagerei na forma como expus acima a crítica aos trabalhos de nobres
autores. Mas, a intenção se limita a demonstrar o quanto somos seduzidos pela
palavra inteligência. Por certo, essa apologia ao intelecto corresponde ao
desequilibrado modelo de desenvolvimento vigente, no qual, um jovem que baixa
livros e músicas ilegalmente pela internet é avaliado como gênio, ainda que
esteja praticando um crime.
Também
assistimos agora à curiosa situação: ao mesmo tempo em que a França consegue
com altíssima tecnologia resgatar a quatro mil metros de profundidade no
Atlântico as caixas-pretas do avião da Air France acidentado em 2009, tem seu
candidato maior a Presidente da República preso, acusado de comportamento
sexual criminoso em Nova York. Parece que a verdadeira caixa-preta é o próprio
homem.
Se já
educamos perfeitamente o pensar para os desafios tecnológicos da engenharia
genética, das missões espaciais, das profundezas marinhas, da nanotecnologia e
demais maravilhas contemporâneas, por certo, devemos, de igual forma, educar
nossas atitudes e ações a fim de plasmarmos mais integralmente o ser humano em
suas diversas faculdades. Se assim não agirmos, a tecnologia será apenas um
adorno a embelezar nosso fracasso comum.
Publicado no jornal Cinform
23/05/2011 – Caderno Emprego
Publicado na revista
Tecnologia da Informação & Negócios nº 02/2011